Tanto quanto me recordo tinha sete anos quando pela primeira vez conversei com o meu bisavô Julian. O bisavô Julian pertencia às nossas vidas inertes, e dedicávamos-lhe tanta atenção como ao móvel das porcelanas, ou até mais. Sentava-se num canto da sala todos os domingos durante a tarde toda com a gaiola do seu rato branco, por quem nutria uma estima absoluta, no colo. Gostava de me lembrar quando ou porque é que tinha aparecido o rato branco, e se isso se tinha dado antes ou depois da morte da minha bisavó, que gostava muito de mim (consta), mas de quem eu não me lembro, pelo que o sentimento podia não ser recíproco. Olhando para trás sinto inveja de mim mesmo em criança, quando tinha legitimidade para não gostar abertamente de alguém que deveria, só porque sim. E haverá motivo mais forte?
Desde que me lembro do bisavô Julian, ele estava sozinho, mesmo que com outras pessoas. Via-se que ele desprezava gente, toda a gente, indiscriminadamente, e eu adorava-o por isso. Tinha demorado 83 anos mas tinha recuperado a sua liberdade. O paradoxo da misantropia é o quão ela é atraente aos olhos dos outros. Não sei se ele gostava de mim mas não tinha motivos para crer nisso, e essa dúvida suscitava-me interesse, porque ao contrario dos meus avós e dos meus pais, o seu amor por mim poderia crescer.
Detestava no entanto o seu rato branco. Não tenho a certeza se se chamava Matias, se tinha um nome semelhante, ou se fui eu que imaginei que ele tinha. Lembro-me no entanto de sentir uma repugnância pelo rato, e de pensar nele mais do que é habitual pensar-se em algo de que se desgosta tanto assim. Confesso que o bicho estúpido conseguia também exercer um certo fascínio em mim, talvez canalizado pelo incompreensível fascínio que o próprio bisavó Julian nutria por ele, e pelo seu pelo de rato e dentes de rato, levemente desalinhados e permanentemente curiosos. Acima de tudo penso que sempre me custou compreender porque é que ele não o deixava sair da gaiola nem para brincar. Não havia nada de intrigante no bicho em si, mas ainda iria faltar muito até que compreendesse a relação do bisavô com o rato.
Foi durante umas férias de verão, na casa da praia. Era um mês e meio duro de gerir. Por um lado dedicar um enorme esforço mental para conseguir afastar-me das actividades dos meus pais e do carinho incondicional dos meus avós, e ao mesmo tempo arranjar algo que fazer ou alguém com quem falar. Todas as manhãs quando acordava para ir para a praia, já o leite estava quente e o pão numa cesta no balcão onde se tomava o pequeno-almoço, um balcão horrível que nem dava para por as pernas e os pés por baixo. Diziam-me que era o meu bisavô que ia de manhã cedo buscar o pão, sozinho marginal fora, e eu acreditava.
Uma noite estávamos a jantar, e eu sentado a fazer um esforço para não escorregar da lista telefónica enquanto ouvia toda a gente a conversar sobre algo que eu não percebia, mas que desconfiava que fosse o mesmo de sempre. A única pessoa que nunca abria a boca para falar era o bisavô Julian. Ficava sentado a comer a sua comida especial de dieta, e era sempre o primeiro a acabar. Estava por acaso a olhar para ele no momento em que esticou o braço para alcançar a travessa da carne assada. Não percebi para que é que ele queria comer a porcaria da nossa comida, se tinha a dele que por ser especial, era de certeza melhor. A última coisa de que me lembro desse jantar foi que toda a gente se calou, e o meu avô começou a discutir com ele, com um tom de voz que eu nunca tinha ouvido entre dois adultos.
Na manhã seguinte a minha mãe acordou-me não deviam ser oito horas da manhã. Disse-me como se me incumbisse de alguma missão, que iria comprar pão com o bisavô. Ao contrario do que era habitual, não se lembrou de me mandar lavar a cara antes de sair, e eu saí porta fora de mão dada com o meu bisavô, como se tivesse acabado de roubar um banco. Já devia ter dado uns bons três passos fora do portão quando me apercebi do que ia fazer. Talvez pela primeira vez, ia estar sozinho com o meu bisavô. Por muita curiosidade que ele me despertasse, a falta de entusiasmo por essa ideia rapidamente substituiu a minha sensação de liberdade fugida.
Todo o caminho até à padaria e ele não me disse uma palavra. Não me importei. Passados os dois primeiros minutos já pensava noutra coisa qualquer, e antes de ter de saber o caminho já estava a entrar para o aconchego da padaria. Sentei-me numa de duas cadeiras de madeira e palha que estavam encostadas à parede, e esperei que o bisavô Julian, na fila, comprasse o pão. Já à saída, o bisavô abriu o saco e ofereceu-me um pão, ainda quente, enquanto começou a comer outro.
Comecei a ir todas as manhãs ao pão com o bisavô Julian, e passado poucos dias era ele que me vinha acordar. Nunca falávamos muito, mas nunca ficamos com nada por dizer. Uma tarde, depois de voltar da praia, vi-o sentado sozinho no jardim, sentado num tijolo de pedra a brincar com o rato branco, sem o deixar sair da gaiola. Não percebia o que é que ele via no rato, mas sabia que gostava dele. Era contrastante a indiferença com que tratava toda a gente e o tempo que ficava a por os dedos por entre as grades, apenas para os retirar tão rápido quanto podia assim que o animal se aproximava.
O bisavô Julian chamou-me para o pé dele, e eu lá fiquei de pé, a vê-lo repetir a mesma brincadeira inúmeras vezes, mais absorvido pelo seu entusiasmo do que pela curiosidade pelo rato branco que talvez se chamasse Matias. Não muito tempo depois, e sem que eu esperasse de todo, o bisavô confiou-me o seu rato: murmurou apenas algumas palavras e virou costas em direcção à casa. Eu continuei no jardim a olhar para o rato e a pensar no bisavô, na gaiola, mas não no bicho. Não obstante, não deviam ter passado dois minutos quando eu peguei no rato, fiz um pequeno círculo no chão com as pernas cruzadas, e vi-o debater-se e a tentar trepar pelas pernas acima. Agarrei-o na minha mão direita e espremi-o até ele guinchar. Depois voltei a pousa-lo e ri-me sozinho. Por fim, fiz-lhe uma pequena festa e olhei para ele. Olhei de novo à minha volta, para os cactos no jardim e as dunas à distancia, e dei por mim a pensar no rato. O que será que ele responderia se alguém lhe perguntasse “o que é que sabes?”. Seria sincero? Bah. Estúpido rato. Fiz-lhe mais uma festinha, e levantei um pouco o joelho. Durante muitos anos jurei a pés juntos que o fizera sem intenção, mas agora que penso nisso não tenho tanta certeza.
Vi-o fugir e correr aos ziguezagues como se não soubesse o que fazer com tanto espaço e o quisesse percorrer com o mesmo afinco com que percorreu aquele rectângulo de palmo e meio durante tanto tempo. Chegado ao pé da sebe, esgueirou-se por entre as traves de madeira que separavam o nosso quintal do do vizinho. O cão da porta ao lado não precisou de mais de 5 metros para o agarrar pela mandíbula, e fazer aquilo que cães grandes fazem quando apanham bichos pequenos pelas mandíbulas.
Apesar das minhas plausíveis desculpas a minha mãe põs-me de castigo e berrou comigo durante mais tempo do que me quero lembrar. Fechei-me no quarto até o dia acabar, e confesso que pensei mais na forma como o bisavô teria pensado de mim do que no que sentiu por ter perdido a única coisa que o despertava para sentimentos outros que não os sentimentos fúteis da velhice. Agora tudo o que lhe restava era a desilusão da realidade. No dia seguinte acordei por mim mesmo era já quase hora de almoço. Ninguém me havia chamado de manhã, e não precisei de muito tempo para perceber que o bisavô Julian tinha deixado de falar comigo. Assim, sem mais nem menos, qual adolescente numa birra inconsequente. Mas a birra dele tinha consequências bem definidas. O desprezo que ele sentia por mim naquele momento era pior do que aquele que tinha antes de me dar a conhece-lo: era um olhar de desilusão e vulgaridade, como se me tivesse constantemente a lembrar-me que para ele fui o príncipe dos fortes mas acabei por me revelar o rei dos fracos. E eu sei que tinha feito mal. Mas não era fraco. Não era como os meus pais e avós, não caminhava pela vida com reflexos no lugar de suspiros e certezas no lugar do amor. Mas ele nunca iria ver isso. E eu perdera a vontade de lho mostrar.