Amiga,
Não é dor que eu sinto mas quem dera que fosse. A vida é mais fácil decapitado, mas experimenta viver com um espinho atravessado! Pois eu hoje não sei bem palpar o que se passa ou o que sobrou, de tudo o que vivi ontem. Mas com a dor eu consigo lidar, sei sempre pra onde ela vai. Lembro-me como se fosse hoje: a menina era como se fosse minha, como se não pertencesse aos olhos de mais ninguém, olhava para mim e sempre sorria, uma menina pequenina e jeitosinha em todos os aspectos, impossível de se lhe negar qualquer capricho que fosse. Eu lembro-me bem dela, bem demais, lembras-me tu. Foi hoje e eu lembro-me como se fosse hoje, mas não foi só hoje. Foi também ontem, e pior, antes d'ontem e antes disso até, antes de ela ser pequeninha e jeitosinha (tanto quanto me lembro). Mas então porque continuava ela a sorrir, se a mim só me apetecia chorar-lhe a cara toda e trincar-lhe uma perna para ela aprender a não me tentar fazer feliz quando eu me estava a safar tão bem sendo miserável?! Porra.
E do outro lado da linha o coração, que eu já nem me lembrava de o ver do lado da audácia, de quem eu já nem me lembrava de o ver, ponto. Ou se calhar via e vejo, ou então nunca soube ver, e se sou cego, porque tenho que ser eu a decidir? Porque é que ela não apaga o sorriso, e não me deixa abandonado na rua, à chuva, como um cão ferrugento, para também eu me poder queixar, e queixar, e queixar e consolar? Não é dor que eu sinto, mas quem dera que fosse, quem me dera matar e ter motivos pra matança e pra vingança, e satisfazer-me não ficando satisfeito, saciar-me num final imperfeito, que me deixa (e deixar já é bom).
Qualquer paspalho nos cafés onde vou sabe onde é a dor, com que é que se parece ou a que é que sabe numa terça-feira à noite, sozinho no compartimento. A dor é boa, a dor é fácil, mas sentir é que é fodido. Sentir é a dor sem um cérebro, ou uma luz sequer, que nos diga onde doer, onde queixar, quem matar. E eu hoje sinto demais, não deveria ter almoçado tanto (diz-se que um homem se conquista pela boca, não sei se é verdade mas o arroz estava bom) não me devia ter esforçado tanto, não devia ter escondido tanto e tão pouco. Olho pra ti e logo sei: não devia qualquer coisa, mas devia muito mais. Assim é que não. Não é dor que eu sinto. (Mas quem dera que fosse.)
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