domingo, 2 de setembro de 2007

Declaração de intenções ou Raio-X

É fim de dia e as àrvores começam a enegrecer-se, começam a ser sombra e terra e noite. Tudo as empurra para esse sítio inicial e negro onde as coisas são mais coisas do que nunca. O mato silencia-se para as deixar adormecer da vida. E há no ar deste mundo sem mundo um peso premonitório de que algo se esconde no silêncio preparando-se, por entre ramos e rastejantes, escondido da luz fraca da lua, para atacar. Ouço um restolhar no mato cerrado. O coração dispara. Do susto do barulho cresce um medo animal em mim. Não sei o que aí vem mas sei que tenho de correr. Não sei para onde correr mas corro. E corro tropeço rasgo a pele arranho os cotovelos arfo até perder a força nas pernas e mesmo assim continuo a correr coração a mil corro corro corro não posso parar. Caio. Rastejo para fugir e é vão todo o esgatafunhar em que só me firo a mim. Algo quente e um pouco arfante também me impede de fugir e eu sei que morro aqui e agora com um peso nas costas, as unhas cheias de terra e a cabeça empurrada contra a caruma. A última coisa que vejo é uma pedra cinzenta. Sei-a como se a visse desde sempre caminhando para mim e anunciando o meu fim. Uma pedra cinzenta, irregular mas arredondada pelo tempo. Tem musgo verde eléctrico num dos lados e há uns bichos minúsculos que vejo perfeitamente acoplando nela. Sei, e sei que é a última coisa que saberei, que debaixo da terra que se veio acumulando em torno dela está o resto desta mesma pedra cinzenta. O resto maior e seu oposto, por lapidar, virgem e escondido, guardado e por desvendar. Sei isso e fecho os olhos guardando neles aquilo que as minhas mãos partidas não podem agarrar. Ouço estalar um espelho que tinha no bolso. Depois estalam os meus ossos debaixo de um peso monstruoso. Não consigo gritar porque não tenho ar mas dói-me uma dor que não sabia ser possível sentir. Não há ai nenhum que possa traduzi-la e por isso de nada me serviria ar para gritar. Vejo somente uma pedra cinzenta no espaço e morro.

Corro nos confins de um mato enegrecido pelo fim do dia. Estou nua e desbravo os troncos à minha frente agilmente com a catana que tenho nas mãos. Não sei de onde venho. Não possuo qualquer memória e sem memória tudo posso no agora. Sinto que é para correr que sou e persigo um cheiro intenso a putrefacção. Um cheiro acre a entranhas doces como as minhas. É o meu nariz que empurra os meus pés nus contra o chão mato fora. Corro e corro e corro e sabe mesmo bem correr. O cheiro aproxima-se e as minhas tripas espasmam-se na sua sede. Salivo um pouco e corro ainda mais. Corro com tudo o que tenho. Avisto o vulto que me foge por entre as árvores. Vejo-o tentar desengonçadamente fugir-me e tenho quase vontade de rir, não fossem as entranhas a empurrar-me com tudo o que sou para a frente. A noite está comigo. Esconde maldosamente os obstáculos no caminho do que me foge e isso atrasa-o. Até que cai. E eu lhe salto logo em cima com todo o meu peso. O cheiro é agora mais intenso do que nunca. Estou enebriada por esta carne frágil debaixo do meu corpo que acha ingenuamente que me pode escapar. Rasgo com os dentes a roupa que traz e o cheiro verte-se como se tivesse destruído um dique. Os meus olhos fechados, o meu nariz saciando-se na sua pele, os seus ossos estalando calmamente debaixo de mim. Neste momento sei com os sentidos que é para isto que sou. Amanhece. E não quero nada.