quinta-feira, 28 de junho de 2007

Certidão de óbito.

Quando nasci, jurei nunca matar
não foi pra isso que duro me fiz
senti a munição no meu bolso
ao olhar-lhe na cara ignorando o que quis.

Tu deste-me a arma, a escolha
eu consciente, não ignorei
não posso dizer que não tenha virado a cara
mas não posso tampouco dizer que tentei.

Fechei os dois olhos, inspirei
apontei a arma e fingi até mirar
dei por mim a lembrar-me, no futuro,
daquele dia em que me ensinaste a matar.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Dar corda (forca coração sapatos)

isso aconteceu noutra vida quando eramos

os discos dos Beatles riscaram-se em mentiras às vezes lembro-me de como tocavam era uma música bonita

quando me lembro sorrio no conforto de uma mentira

depois sou arrancada para o buraco que se veio cavando em mim no fundo uma grafonola que quero enterrar

desculpa

no meu sorriso arde a tua dentada de adeus e não vás como se me coubesse a mim escolher

por enquanto ouço um a um os discos riscados para depois os partir enquanto me olhas certo de não os poder resgatar

um dia a música vai parar

trago no bolso uma caixinha de corda para aquecer os dedos e esquecer como o fogo pode ser quente

não há-de doer perder quando se ganhou

a ti que te doa o teres ganho e por isso teres perdido

THIS IS NOT WAR

que digam isso depois de me verem camuflada até aos dentes o branco dos olhos furando a força do mato

sentes e dizes que sentes e sentes como se eu pudesse compreender esse hiato que vai da veia aos olhos à boca ao braço ao sexo

queres acreditar no que não pode ser verdade

ou se o é é-o para ti e para a narina forrada a contratos que habitas

não sei viver nesse país desconheço as suas regras

descompreendo com a força de quem não quer compreender

não quero a dor de achar na verdade desse ponto que picas o ser que eu desenhava sem cartões

perdeste-te

perdi-te

perdemo-nos

como eu gostava que nos perdessemos

tu queres estar achado

e eu devo ter andado perdida porque não me lembro de ter ouvido isso nos discos dos Beatles

domingo, 24 de junho de 2007

Não é dor que eu sinto.

Amiga,

Não é dor que eu sinto mas quem dera que fosse. A vida é mais fácil decapitado, mas experimenta viver com um espinho atravessado! Pois eu hoje não sei bem palpar o que se passa ou o que sobrou, de tudo o que vivi ontem. Mas com a dor eu consigo lidar, sei sempre pra onde ela vai. Lembro-me como se fosse hoje: a menina era como se fosse minha, como se não pertencesse aos olhos de mais ninguém, olhava para mim e sempre sorria, uma menina pequenina e jeitosinha em todos os aspectos, impossível de se lhe negar qualquer capricho que fosse. Eu lembro-me bem dela, bem demais, lembras-me tu. Foi hoje e eu lembro-me como se fosse hoje, mas não foi só hoje. Foi também ontem, e pior, antes d'ontem e antes disso até, antes de ela ser pequeninha e jeitosinha (tanto quanto me lembro). Mas então porque continuava ela a sorrir, se a mim só me apetecia chorar-lhe a cara toda e trincar-lhe uma perna para ela aprender a não me tentar fazer feliz quando eu me estava a safar tão bem sendo miserável?! Porra.

E do outro lado da linha o coração, que eu já nem me lembrava de o ver do lado da audácia, de quem eu já nem me lembrava de o ver, ponto. Ou se calhar via e vejo, ou então nunca soube ver, e se sou cego, porque tenho que ser eu a decidir? Porque é que ela não apaga o sorriso, e não me deixa abandonado na rua, à chuva, como um cão ferrugento, para também eu me poder queixar, e queixar, e queixar e consolar? Não é dor que eu sinto, mas quem dera que fosse, quem me dera matar e ter motivos pra matança e pra vingança, e satisfazer-me não ficando satisfeito, saciar-me num final imperfeito, que me deixa (e deixar já é bom).

Qualquer paspalho nos cafés onde vou sabe onde é a dor, com que é que se parece ou a que é que sabe numa terça-feira à noite, sozinho no compartimento. A dor é boa, a dor é fácil, mas sentir é que é fodido. Sentir é a dor sem um cérebro, ou uma luz sequer, que nos diga onde doer, onde queixar, quem matar. E eu hoje sinto demais, não deveria ter almoçado tanto (diz-se que um homem se conquista pela boca, não sei se é verdade mas o arroz estava bom) não me devia ter esforçado tanto, não devia ter escondido tanto e tão pouco. Olho pra ti e logo sei: não devia qualquer coisa, mas devia muito mais. Assim é que não. Não é dor que eu sinto. (Mas quem dera que fosse.)

terça-feira, 19 de junho de 2007

Sonho de Jude

Jude acordou encostado à parede sem saber bem como.
Jude não se lembra de adormecer. Jude lembra-se de estar a correr descalço numa rua deserta de um filme onde o protagonista é uma máscara. Jude lembra-se de conseguir chegar à máscara com a ponta do dedo indicador. Jude lembra-se do bafo da verdade a gelar-lhe o peito. Jude lembra-se do frio nos pés. Jude lembra-se do fogo a arder numa janela. Jude lembra-se, depois de pensar muito, que foi a mando "deles" que ateou o fogo. Jude não sabe quem são "eles" mas "eles" metem-lhe medo. Jude já se tinha cruzado com "eles" mas "eles" não o tinham manipulado ainda. Jude só agora "os" viu caminhar a seu lado para lhe dizerem uma palavra ao ouvido e lhe mostrarem o Livro escondido pelo sobretudo. Jude não tinha alternativa. Jude sabia que era esse o seu fazer e haver. Jude caminhou pelo trepidar do fogo até uma sala completamente branca e vazia, despida de tempo ou espaço. Jude encontrou o Livro no chão. Jude abriu-o e o arrepio de verdade gelou-lhe o sangue. Jude conseguiu abrir a boca para dizer que não quero a verdade, peço desculpa. Jude afinal não precisa da razão de nada. Jude não quer estar nesta sala branca. Jude tem medo. Jude esquece-se de fechar o livro e as palavras são um vómito a tornar-se nascente a tornar-se poço. Jude tem a enchente de palavras água pelos joelhos. Jude tem a enchente de palavras água pela cintura. Jude tem a enchente de palavras água pelo pescoço. Jude não sabe nadar e começa a engolir palavras para não ser engolido por elas. Jude só quer não ser Jude, deixai-o ser outra coisa qualquer.
Jude foi deixado encostado à parede do quarto com o peso do que podia ter sabido.

sábado, 16 de junho de 2007

Não sei se pairas.

Pairas. Pairas por aqui e já não finges que não o fazes, que não me vês, que não te sentes. Baixas a guarda porque por ora estamos sozinhos e porque se a memória não te falha, já não há motivos para não o fazer. Apertas os sapatos e eu não estou a olhar, sabes que eu não estou a olhar e continuas a apertar. Começas a correr e eu continuo a não olhar. Mas agora determinado a não olhar com a força de quem observa um pormenor de agudez filigrânica, num desfocar premeditado de símbolos e sinais que insistem em esbarrar contra mim. E quase que sinto. Mas não olho- até que olho, porque sei que não tenho com que me preocupar, pois não hei-de ver.

Levanto o queixo e tu levantas a moral, pois sabes que só tens de correr em frente, num só caminho, numa só direção, e eu. Eu? Eu tenho que me decidir a calçar. Sorris à revelia como quem vê esperanças e me puxa para as certezas. Passas por mim na segunda volta e eu finjo-me de espantado: "Já começaste a correr?".

sexta-feira, 15 de junho de 2007

um espaço por medir

de mim a ti paredes impossíveis e mudas

de mim a ti a velocidade de um soco rachando tijolos para deixar passar o uivo fresco da noite que medra do lado de lá da parede

de mim a ti cimento areia vidro água pó em desequilíbrio na linha branca que separa o frio do quente

de mim a ti um grito abafado tacteando a face rugosa e ímpia do lençol que cobre a mobília na casa de um morto

de mim a ti um bloco de mármore por talhar num país sem martelos

de mim a ti um risco um traço infinito a apagar-se nas extremidades

de mim a ti tu e eu de costas a contar os passos que faltam para ver quem será atingido

de mim a ti o refogado temperado a tiro de caçadeira que ferve na tinta que escorre de um bloco de notas esquecido à chuva