quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Hoje acordei.

Hoje acordei nas entrelinhas que jurei ler. O meu destino não fez parte da tua insistência, mas todos os pretéritos se tornam perfeitos quando me apercebo dos imperfeitos. Ai a Clarividência, a justiça e a injustiça. Se a nossa vida fosse esquadrada e pensada, se os nossos sonhos fossem traçados e premeditados, se a escrita livre não se apoderasse de nós. Hoje acordei porque tinha de acordar, e o dever é uma coisa fodida, particularmente quando o sol já se põe. A tua mão também é uma coisa fodida, independentemente do estado do sol. Quem me dera que o teu cheiro estivesse aqui.


No epicentro da atenção,
Um destino no seu lugar,
Um amor livre ao acordar.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Dois pesadelos e uma carta

Evangelho segundo Alice

Quando olhar para trás de mais longe, não de onde estou, mas de mais longe, de bem longe, de outro país, quando estiver rodeada por outros cheiros e outras cores, quando aquilo para que olhar já não me soar sequer a mim, vou sorrir com carinho para as horas que gastei em frente ao computador adivinhando alguém com existência assinada pelas letras que iam aparecendo. É um cheiro esse sítio que nunca existiu, esse adivinhar do teu olhar, da tua voz, do teu riso. Horas perdidas a construir-te com o cuidado que se deve ter com as obras de arte. Horas fiando a tua pele e o teu abraço, armado escudo para o que seríamos, que eu sabia que só nós podíamos ser. Eras tudo, tudo só tudo e nada mais. Tudo o que consegui pilhar do mundo, eras tu. Tudo o que o mundo me provava ser incapaz de ser, eras tu. Tudo o que eu não poderia jamais ser, eras tu. Tudo o que tu nunca poderias usar para sempre, eras tu. Durante um ano foste a minha esperança de outra vida, um eco do mundo que só havia em mim, foste as cordas que me desamarravam e o meu reflexo novo. Ainda consigo ouvir ecos desse deus que foste. Ainda me lembro do arrepio da tua voz pela primeira vez, do que corria para ti que eras este écran em que hoje debito tempo, de como fui adolescente agora que já não o podia. Tu eras a minha mentira de mundo, a minha prova de vida extraterrestre, o bolinho chinês com a mensagem certa como que a provar razões, eras o reflexo certo na água e mergulhar era o que eu mais queria, nadar contigo rio fora e ser só. Eras o que eu sempre quis, eu sabia, eras. Durante um ano foste-me chegando sem pressa, como mar que toma a terra de assalto sabendo que tem todos os biliões de anos que estão por vir para o fazer. Tu eras o mar que me inundava por piada, eras o mar por que eu me queria ver inundar quando não o podia, eras o mar para onde eu só podia desaguar e nada mais, com calma, o tempo há-de ser nosso. Cheiro o teu sal ainda, o sal que não tens nem poderías ter porque não. Sei de cor as noites solitárias que passaste no teu quarto, sei de cor os caminhos que vão até à biblioteca e desconheço, sei de cor a música que soava quando pisavas esses sítios que fiquei por conhecer, esses sítios que existem somente em mim, rascunhados em torno desse deus que foste. Fui outra coisa contigo e para ti, que eras ninguém. Fiz-me algo de que gostei, de que ainda gosto, de que me orgulho até de ter conseguido. E de repente desfiaste-me, desfizeste-me, perdi-me. Perdi.
Um ano, um ano viveu deus na terra, diz o evangelho segundo Alice. Um ano.


A verdadeira morte de Romeu e Julieta

O relógio estava coxo, fazia-se o tempo que não devia mas podia e queria. Cambaleou horas erradas fora e emendou calendários com desculpas sem qualquer intenção de coerência. O nosso relógio estava doente, a dar as horas bombeadas pelo sangue e os minutos ditados por relógios do passado. Que horas seriam se o nosso relógio tivesse algum dia tido as duas pernas viradas para a frente? Não saberemos. O relógio explodiu. Cada uma das suas partes se separou das outras para logo depois se divir em minúsculos estilhaços que voaram em frente às nossas lágrimas imóveis e as atravessaram soltando delas a água e o grito. Os ponteiros viajaram inteiros do centro da hora errada para os dois pontos opostos em que estavamos. O das horas incidiu majestoso no teu olho direito de que verteram baralhos de cartas rangendo como móveis antigos à noite e um gemido fininho, quase apagado, um gemido de dor verdadeira, dor impossível de calar mas dor sem vontade de se apresentar ou de ser sequer apresentada, dor muda feita pancada forte da carne contra a carne e nunca dor do metal a furar a carne. Por cima da minha orelha cravou-se com força tal o ponteiro dos minutos atrasados que atravessou a minha cabeça e saiu ainda em velocidade levando espetado na ponta o início de uma bandeira por desfraldar. Descolava grandioso o ponteiro e ela se fazia seu rasto desenrolando-se sem pressa até que, vomitada por completo, se abriu imponente com um som seco e de dentro dela caíram papéis brancos minúsculos com textos imperceptíveis, textos por escrever e toda uma literatura que ficava por ser, ali, onde as letras eram armas, eram tanques, eram bombas, eram corpos humanos dilacerados e profanados, eram minas, eram arame farpado e balas perdidas.

A fotografia de um movimento imperceptível: a bandeira púrpura no ar sendo levada pelos minutos errados, os papéis no ar como provas armadilhadas, os estilhaços do relógio errado no ar furando lágrimas e papéis, furando carne, furando espaço, furando os nosso corpos cegos tombando como mártires silenciosos no vácuo.


Querido Jude,
Ando a ter pesadelos. Acordo transpirada e aos gritos, chamando por alguém que não existe. Quando me acalmo é só porque me apercebo de que tudo era uma ficção barata criada pelo meu cérebro para entreter o sono. Mas depois vêm-me à cabeça imagens e sítios, coisas que vivi sem ter vivido e cresce em mim um novo medo, uma sensação de abismo e impossibilidade, como se me tivesse sentado a olhar para o sítio onde o mundo acaba e lá, no fim, não há nada, mais nada, nem tu, nem eu, nem casas, nem animais, nem nada. Nada. Aí, mesmo transpirada, deito-me e cubro o meu corpo até ao nariz, até que o meu ângulo de visão alcance somente o tecto. Tenho medo das paredes e das portas. O tecto acalma-me. Estou protegida. Estou rodeada de coisas que fazem sentido, como estes lençóis que existem e esta cama quente e este tecto que foi construído por pessoas que estão a dormir e amanhã vão trabalhar. Só assim consigo voltar a fechar os olhos. Mas o sono raramente acompanha a paz e cedo me começam a perturbar as sensações do sonho. A dor falsa é igual à dor verdadeira, senti-a com tudo o que uso para sentir no mundo real, que é aquilo que está dentro de mim, e afinal não a consigo apagar assim tão facilmente. Ela invade-me e eu abro os olhos. Ela acalma. Então eu tento pensar em coisas boas. Penso em ti. Rio-me com uma qualquer tolice que tenhas dito. Rio alto até que me invade de súbito a mesma dor mas agora mais certa. Eras tu quem me magoava no sonho. E que vontade de te bater de te chorar de te destruir. A dor alimenta-se desta raiva e quando chega a este ponto já não há nada que possa fazer quanto ao que sinto. Sei que não me fizeste nada. O que me fizeste no sonho não foste tu, foi outra pessoa ou outra coisa, alguém que se apoderou da tua imagem para me ferir. Sei, mas sinto na mesma. E é-me insuportável a dor causada por ti, que és tu. Qualquer outra pessoa no mundo acertaria ao de leve no meu escudo, mas tu, ou a tua imagem roubada por um espírito maligno, podem ferir-me até nos sítios em que não sou, podem ferir-me nos espaços entre a pele e nas unhas ou no cabelo, que são aquelas coisas nossas que não sentem. Quando chego a este ponto, dobro-me sobre mim e choro. Primeiro devagarinho, no escuro silêncio dos lençóis. Depois as lágrimas ganham força e a minha boca dobra-se para verter soluços em vez de soluções. Choro tudo o que fizeste - que normalmente são coisas que tu nunca poderias fazer, coisas que quem gosta não faz pura e simplesmente porque gosta - e o que isso me dói ao abalar o que eu sinto por ti. As prateleiras em que arrumo as caixas dos meus sentimentos partem-se, dobram-se, inclinam-se e as caixas entornam-se. Ouço-as a cair no quarto ao lado - era assim no meu sonho. Tu a patinar sobre sentimentos líquidos azuis e verdes e amarelos e pretos e vermelhos e brancos até que cais sobre algo que estala e nunca mais te mexes. Eu sei que morreste. Bem feita, morreste, penso de mim para mim no sonho. Depois começo a apanhar os líquidos com boiões novos e lembro-me do que eras quando eu não via as facas que me espetavas, lembro-me do que eras para ser e de quando eu não tinha pesadelos, só dores de barriga. E tenho pena. Que fim mais estúpido para um sonho, bem sei. Tu morto e eu com pena, não por ti, mas por mim. Lembro-me disto e choro ainda mais sozinha debaixo do tecto de lençóis. Até que sinto uma mão pesada sobre o meu ombro. Tremendo de medo páro de soluçar e espero que quem quer que seja se vá embora e não me mate, como conjecturei fazer tantas vezes quando era pequena caso um assassino entrasse em minha casa de noite. Quase sem respirar ouço a mão avançar para a ponta do lençol, levantá-lo levemente e tactear pelo meu cabelo até à minha orelha, que começa a afagar com movimentos circulares que reconheço. Nao sei onde fui arranjar a coragem, mas baixei o lençol e desvendei com ar de quem confirma a suspeita desejada a tua cara. Estavas vivo. Tinhas-me ouvido chorar e tinhas vindo ver o que se passava comigo. Deitaste-te ao meu lado na cama sem tirar a mão da minha orelha e olhámo-nos até adormecer, sem dizer nada. Trouxeste contigo, que és tu, a paz.

sábado, 3 de novembro de 2007

A legitimidade da indiferença.

Tanto quanto me recordo tinha sete anos quando pela primeira vez conversei com o meu bisavô Julian. O bisavô Julian pertencia às nossas vidas inertes, e dedicávamos-lhe tanta atenção como ao móvel das porcelanas, ou até mais. Sentava-se num canto da sala todos os domingos durante a tarde toda com a gaiola do seu rato branco, por quem nutria uma estima absoluta, no colo. Gostava de me lembrar quando ou porque é que tinha aparecido o rato branco, e se isso se tinha dado antes ou depois da morte da minha bisavó, que gostava muito de mim (consta), mas de quem eu não me lembro, pelo que o sentimento podia não ser recíproco. Olhando para trás sinto inveja de mim mesmo em criança, quando tinha legitimidade para não gostar abertamente de alguém que deveria, só porque sim. E haverá motivo mais forte?
Desde que me lembro do bisavô Julian, ele estava sozinho, mesmo que com outras pessoas. Via-se que ele desprezava gente, toda a gente, indiscriminadamente, e eu adorava-o por isso. Tinha demorado 83 anos mas tinha recuperado a sua liberdade. O paradoxo da misantropia é o quão ela é atraente aos olhos dos outros. Não sei se ele gostava de mim mas não tinha motivos para crer nisso, e essa dúvida suscitava-me interesse, porque ao contrario dos meus avós e dos meus pais, o seu amor por mim poderia crescer.
Detestava no entanto o seu rato branco. Não tenho a certeza se se chamava Matias, se tinha um nome semelhante, ou se fui eu que imaginei que ele tinha. Lembro-me no entanto de sentir uma repugnância pelo rato, e de pensar nele mais do que é habitual pensar-se em algo de que se desgosta tanto assim. Confesso que o bicho estúpido conseguia também exercer um certo fascínio em mim, talvez canalizado pelo incompreensível fascínio que o próprio bisavó Julian nutria por ele, e pelo seu pelo de rato e dentes de rato, levemente desalinhados e permanentemente curiosos. Acima de tudo penso que sempre me custou compreender porque é que ele não o deixava sair da gaiola nem para brincar. Não havia nada de intrigante no bicho em si, mas ainda iria faltar muito até que compreendesse a relação do bisavô com o rato.

Foi durante umas férias de verão, na casa da praia. Era um mês e meio duro de gerir. Por um lado dedicar um enorme esforço mental para conseguir afastar-me das actividades dos meus pais e do carinho incondicional dos meus avós, e ao mesmo tempo arranjar algo que fazer ou alguém com quem falar. Todas as manhãs quando acordava para ir para a praia, já o leite estava quente e o pão numa cesta no balcão onde se tomava o pequeno-almoço, um balcão horrível que nem dava para por as pernas e os pés por baixo. Diziam-me que era o meu bisavô que ia de manhã cedo buscar o pão, sozinho marginal fora, e eu acreditava.
Uma noite estávamos a jantar, e eu sentado a fazer um esforço para não escorregar da lista telefónica enquanto ouvia toda a gente a conversar sobre algo que eu não percebia, mas que desconfiava que fosse o mesmo de sempre. A única pessoa que nunca abria a boca para falar era o bisavô Julian. Ficava sentado a comer a sua comida especial de dieta, e era sempre o primeiro a acabar. Estava por acaso a olhar para ele no momento em que esticou o braço para alcançar a travessa da carne assada. Não percebi para que é que ele queria comer a porcaria da nossa comida, se tinha a dele que por ser especial, era de certeza melhor. A última coisa de que me lembro desse jantar foi que toda a gente se calou, e o meu avô começou a discutir com ele, com um tom de voz que eu nunca tinha ouvido entre dois adultos.

Na manhã seguinte a minha mãe acordou-me não deviam ser oito horas da manhã. Disse-me como se me incumbisse de alguma missão, que iria comprar pão com o bisavô. Ao contrario do que era habitual, não se lembrou de me mandar lavar a cara antes de sair, e eu saí porta fora de mão dada com o meu bisavô, como se tivesse acabado de roubar um banco. Já devia ter dado uns bons três passos fora do portão quando me apercebi do que ia fazer. Talvez pela primeira vez, ia estar sozinho com o meu bisavô. Por muita curiosidade que ele me despertasse, a falta de entusiasmo por essa ideia rapidamente substituiu a minha sensação de liberdade fugida.
Todo o caminho até à padaria e ele não me disse uma palavra. Não me importei. Passados os dois primeiros minutos já pensava noutra coisa qualquer, e antes de ter de saber o caminho já estava a entrar para o aconchego da padaria. Sentei-me numa de duas cadeiras de madeira e palha que estavam encostadas à parede, e esperei que o bisavô Julian, na fila, comprasse o pão. Já à saída, o bisavô abriu o saco e ofereceu-me um pão, ainda quente, enquanto começou a comer outro.
Comecei a ir todas as manhãs ao pão com o bisavô Julian, e passado poucos dias era ele que me vinha acordar. Nunca falávamos muito, mas nunca ficamos com nada por dizer. Uma tarde, depois de voltar da praia, vi-o sentado sozinho no jardim, sentado num tijolo de pedra a brincar com o rato branco, sem o deixar sair da gaiola. Não percebia o que é que ele via no rato, mas sabia que gostava dele. Era contrastante a indiferença com que tratava toda a gente e o tempo que ficava a por os dedos por entre as grades, apenas para os retirar tão rápido quanto podia assim que o animal se aproximava.

O bisavô Julian chamou-me para o pé dele, e eu lá fiquei de pé, a vê-lo repetir a mesma brincadeira inúmeras vezes, mais absorvido pelo seu entusiasmo do que pela curiosidade pelo rato branco que talvez se chamasse Matias. Não muito tempo depois, e sem que eu esperasse de todo, o bisavô confiou-me o seu rato: murmurou apenas algumas palavras e virou costas em direcção à casa. Eu continuei no jardim a olhar para o rato e a pensar no bisavô, na gaiola, mas não no bicho. Não obstante, não deviam ter passado dois minutos quando eu peguei no rato, fiz um pequeno círculo no chão com as pernas cruzadas, e vi-o debater-se e a tentar trepar pelas pernas acima. Agarrei-o na minha mão direita e espremi-o até ele guinchar. Depois voltei a pousa-lo e ri-me sozinho. Por fim, fiz-lhe uma pequena festa e olhei para ele. Olhei de novo à minha volta, para os cactos no jardim e as dunas à distancia, e dei por mim a pensar no rato. O que será que ele responderia se alguém lhe perguntasse “o que é que sabes?”. Seria sincero? Bah. Estúpido rato. Fiz-lhe mais uma festinha, e levantei um pouco o joelho. Durante muitos anos jurei a pés juntos que o fizera sem intenção, mas agora que penso nisso não tenho tanta certeza.
Vi-o fugir e correr aos ziguezagues como se não soubesse o que fazer com tanto espaço e o quisesse percorrer com o mesmo afinco com que percorreu aquele rectângulo de palmo e meio durante tanto tempo. Chegado ao pé da sebe, esgueirou-se por entre as traves de madeira que separavam o nosso quintal do do vizinho. O cão da porta ao lado não precisou de mais de 5 metros para o agarrar pela mandíbula, e fazer aquilo que cães grandes fazem quando apanham bichos pequenos pelas mandíbulas.

Apesar das minhas plausíveis desculpas a minha mãe põs-me de castigo e berrou comigo durante mais tempo do que me quero lembrar. Fechei-me no quarto até o dia acabar, e confesso que pensei mais na forma como o bisavô teria pensado de mim do que no que sentiu por ter perdido a única coisa que o despertava para sentimentos outros que não os sentimentos fúteis da velhice. Agora tudo o que lhe restava era a desilusão da realidade. No dia seguinte acordei por mim mesmo era já quase hora de almoço. Ninguém me havia chamado de manhã, e não precisei de muito tempo para perceber que o bisavô Julian tinha deixado de falar comigo. Assim, sem mais nem menos, qual adolescente numa birra inconsequente. Mas a birra dele tinha consequências bem definidas. O desprezo que ele sentia por mim naquele momento era pior do que aquele que tinha antes de me dar a conhece-lo: era um olhar de desilusão e vulgaridade, como se me tivesse constantemente a lembrar-me que para ele fui o príncipe dos fortes mas acabei por me revelar o rei dos fracos. E eu sei que tinha feito mal. Mas não era fraco. Não era como os meus pais e avós, não caminhava pela vida com reflexos no lugar de suspiros e certezas no lugar do amor. Mas ele nunca iria ver isso. E eu perdera a vontade de lho mostrar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Ironia: A tua história é agora a minha história.

Prolepse: Sou a melhor cliente do take-away do meu bairro e passei a viver em restaurantes. Já nem me lembro de como se liga um fogão. Mas às vezes tenho pena de que essa gente me tenha roubado o prazer de cozinhar.

A história: A mesa foi posta sem medo de esvaziar o frigorífico, a mesa foi posta e os convidados não trouxeram sequer vinho - a loja estava fechada. A mesa estava posta e eles chegaram tarde porque ainda tentaram passar no supermercado, sorte a deles, estava fechado. Talvez eu tenha qualquer coisa para beber, não faz mal. Bebamos do meu. A mesa posta e a comida a arrefecer e as prateleiras esvaziadas para o banquete. Os meus convidados também já deram banquetes, lembram-se bem de como era em suas casas, lembram-se do trabalho de preparação, lembram-se da preocupação com o conforto de toda a gente menos o seu, lembram-se da sujidade que esfregaram da loiça sozinhos a ouvir músicas feitas para serem acompanhadas pelo esfregão de palha d'aço a roçar o fundo ressequido de um tacho. A memória não tem força suficiente. Empanturram-se estes homens e mulheres anafados sentados à minha mesa com os pratos que cozinhei horas a fio e arrotam de prazer no fim. Tecem elogios rasgados aos meus dotes culinários. Obrigada. Comentam o trabalho que deve ter dado. Eu gosto de cozinhar. Então podemos vir amanhã outra vez? Porque não? Eu gosto de cozinhar. No dia seguinte não trazem vinho nem se desculpam por não o terem feito. Não faz mal, há-de haver qualquer coisa para beber no frigorífico. Comem e riem muito ao esvaziarem as garrafas do vinho que é meu mas que não competia a mim trazer. Espero que tenham gostado. Sim, estava muito bom. Amanhã à mesma hora? Não soube dizer que não. Até me agradava a companhia. E assim como assim eu até gosto de cozinhar. No dia seguinte trouxeram um convidado. Eu não o conhecia nem fazia conta com ele mas onde comem cinco também comem seis. Sentaram-se e serviram-se do vinho que já estava na mesa. Eu não consegui comer. Estou cansada. Sirvam-se vocês. E comeram o meu jantar deliciosamente preparado, beberam o meu vinho que os esperava, conversaram uns com os outros. Adormeci no sofá e sonhei com eles, com o passado, quando jantávamos fora e havia na mesa uma garrafa de vinho verde límpido, quase doce, que bebíamos noites sem fim. Era uma garrafa interminável essa que sugávamos quando as noites eram intermináveis e nada nos impedia de estar juntos, de nos mandarmos uns contra os outros, de mandar em nós a verdade e a vontade de estar e o prazer, sim, o prazer dessa presença. Nós éramos só uma gargalhada ébria a ecoar restaurante fora e nem pensávamos na comida nem em quem pagava a conta. Ríamos e bebíamos como dantes neste sonho, até me sair da boca um efusivo Hoje pago eu. Houve um silêncio. Eles fitaram-me e nos seus olhos tremia um brilho novo. Sorri, levantei-me e fui pagar ao balcão. Quando voltei eles não estavam à mesa. Corri porta fora para os apanhar já a caminho de casa. Então? Sabíamos que vinhas aí. Sabíamos. Acordei subitamente com a pancada da porta a fechar. Tinha na mão um bilhete: Obrigada. Amanhã à mesma hora? Sentei-me, fiz uma conta de somar e chorei. Chorei, mandei a loiça fora em vez de a lavar como sempre e foi a chorar que fiz as malas e mudei de casa nessa mesma noite. Deixei somente um bilhete colado na porta. Perdi a vontade de cozinhar. Bom jantar.

Posfácio: Com as tuas mãos fazes de mim o que te tornaste às mãos de outrem.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Mas,

Se eu tivesse algo para escrever, seria para ti. Seria para te dizer coisas, fazer sentir coisas ao saber que também eu as sinto e que o consigo provar. Se eu conseguisse prová-lo sem o sentir, também o faria, nem que fosse para mais tarde me arrepender. Se eu me arrependesse de fazer por ti a migalha do que sou, talvez pudesse sentir o que digo e o que escrevo. Se eu te escrevesse sempre que te sentes só, contigo e comigo que somos um só, único, só, sózinho, honraria a tua necessidade de me descrever no que escreves. Se tu não escrevesses descrevendo o que julgas ver, sentirias o que julgas sentir. Se eu conseguisse escrever o que sinto, seria pra te ver, a ti e a nós, numa forma inusitada e em significantes conteúdos: usaria todos os adjectivos que conheço e até inventaria verbos. Se num buraco suspenso como se fosse um sólido flutuante, me restasse algo para ser, ver, querer, nachar ou viver seria para gastar em ti. Se.

A desejada morte de Sísifo

Carrego às minhas costas uma culpa que não me pertence, uma culpa que me foi emprestada, uma culpa tirada do armário de quem desconheço. Esta culpa é pesada. Carrego-a como quem faz aquilo que tem de fazer mas não percebe porque é que tem de carregar trapos que não são seus. Eu não fiz nada. Se há coisa que eu fiz foi não fazer nada, foi comer o grito e deixá-lo acontecer só na minha barriga, foi sentar-me à espera da minha morte ou de um novo dia. Não tenho culpa se o dia veio. Não me olhes assim, não tenho. O sol surgiu sobre as copas escuras das àrvores e eu não morri. Foi o que fiz: não morri. Que culpa pode haver nisso? Nenhuma. Mas eu carrego-a, uma culpa tricotada por outros para mim porque é mais fácil. Sim, fácil. Deixo aqui a trouxa, está como ma deste. Não sou a aguadeira da culpa. Não fui e não sou. Não posso ser responsabilizada pela noite do outro lado do teu coração. E mereço mais.

O sol já se pôs há tempo suficiente e tu continuas com os olhos no horizonte a fitar a noite. Não vês nas tuas costas o dia a nascer? Estás a perder a hora mágica.

Ficarias chateada se soubesses que escrevo nas tuas costas?

domingo, 2 de setembro de 2007

Declaração de intenções ou Raio-X

É fim de dia e as àrvores começam a enegrecer-se, começam a ser sombra e terra e noite. Tudo as empurra para esse sítio inicial e negro onde as coisas são mais coisas do que nunca. O mato silencia-se para as deixar adormecer da vida. E há no ar deste mundo sem mundo um peso premonitório de que algo se esconde no silêncio preparando-se, por entre ramos e rastejantes, escondido da luz fraca da lua, para atacar. Ouço um restolhar no mato cerrado. O coração dispara. Do susto do barulho cresce um medo animal em mim. Não sei o que aí vem mas sei que tenho de correr. Não sei para onde correr mas corro. E corro tropeço rasgo a pele arranho os cotovelos arfo até perder a força nas pernas e mesmo assim continuo a correr coração a mil corro corro corro não posso parar. Caio. Rastejo para fugir e é vão todo o esgatafunhar em que só me firo a mim. Algo quente e um pouco arfante também me impede de fugir e eu sei que morro aqui e agora com um peso nas costas, as unhas cheias de terra e a cabeça empurrada contra a caruma. A última coisa que vejo é uma pedra cinzenta. Sei-a como se a visse desde sempre caminhando para mim e anunciando o meu fim. Uma pedra cinzenta, irregular mas arredondada pelo tempo. Tem musgo verde eléctrico num dos lados e há uns bichos minúsculos que vejo perfeitamente acoplando nela. Sei, e sei que é a última coisa que saberei, que debaixo da terra que se veio acumulando em torno dela está o resto desta mesma pedra cinzenta. O resto maior e seu oposto, por lapidar, virgem e escondido, guardado e por desvendar. Sei isso e fecho os olhos guardando neles aquilo que as minhas mãos partidas não podem agarrar. Ouço estalar um espelho que tinha no bolso. Depois estalam os meus ossos debaixo de um peso monstruoso. Não consigo gritar porque não tenho ar mas dói-me uma dor que não sabia ser possível sentir. Não há ai nenhum que possa traduzi-la e por isso de nada me serviria ar para gritar. Vejo somente uma pedra cinzenta no espaço e morro.

Corro nos confins de um mato enegrecido pelo fim do dia. Estou nua e desbravo os troncos à minha frente agilmente com a catana que tenho nas mãos. Não sei de onde venho. Não possuo qualquer memória e sem memória tudo posso no agora. Sinto que é para correr que sou e persigo um cheiro intenso a putrefacção. Um cheiro acre a entranhas doces como as minhas. É o meu nariz que empurra os meus pés nus contra o chão mato fora. Corro e corro e corro e sabe mesmo bem correr. O cheiro aproxima-se e as minhas tripas espasmam-se na sua sede. Salivo um pouco e corro ainda mais. Corro com tudo o que tenho. Avisto o vulto que me foge por entre as árvores. Vejo-o tentar desengonçadamente fugir-me e tenho quase vontade de rir, não fossem as entranhas a empurrar-me com tudo o que sou para a frente. A noite está comigo. Esconde maldosamente os obstáculos no caminho do que me foge e isso atrasa-o. Até que cai. E eu lhe salto logo em cima com todo o meu peso. O cheiro é agora mais intenso do que nunca. Estou enebriada por esta carne frágil debaixo do meu corpo que acha ingenuamente que me pode escapar. Rasgo com os dentes a roupa que traz e o cheiro verte-se como se tivesse destruído um dique. Os meus olhos fechados, o meu nariz saciando-se na sua pele, os seus ossos estalando calmamente debaixo de mim. Neste momento sei com os sentidos que é para isto que sou. Amanhece. E não quero nada.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Há sempre uma terceira pessoa no singular.

Eu sou.
Tu deixaste.
Ele quis.
Nós fomos.
Vós olhasteis.
Eles deixaram de importar.






Eu era.
Tu somos.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O mundo só é literal nas sombras da caverna

Querido Jude,

Não vejo problema nenhum no Querido nem no Jude nem em mais nenhuma palavra. A palavra é só uma palavra. Não vou nela porque não consigo. É por sabê-lo que não preciso de outra língua nem de espaços mentirosos. Tudo o que eu possa escrever-te é já mentira e impossibilidade. Tudo o que eu possa escrever-te vai perder-se no caminho que faz o sentir até à caneta, o papel até ti, os teus olhos a ti mesmo. Tudo o que te chega é uma ideia vaga, uma gota seca do sangue que corre nas minhas veias. No que eu digo não vem nada porque nada pode vir e ainda bem. Quando achas que leste, achas mal, achas até tudo ao contrário. Leste-te a ti no que adivinhas em mim e em mim projectas o teu medo ou a tua vontade. Não sei porque também as tuas palavras mentem quando as leio em voz alta. Da minha boca saem ao mesmo tempo mentiras em duplicado - as tuas e as minhas. E uma terceira se cria no espaço. Uma forjada nem por ti nem por mim e só pelos dois sem querer nem para isso batalhar. Uma ideia de mentira a que ambos fechamos os olhos porque não queremos ver. No ver esvai-se o sentir e eu e tu queremos sentir sem sentir que o queremos.

Houve um dia que se bastou a si mesmo. Houve um dia em que não precisei de máquina fotográfica nem de cadernos. Houve um dia de olhos bem abertos, mas com diques no que vai dos olhos ao cérebro.

Estar lá e ver muito e tudo com cada centímetro de corpo. É possível.

À Luicq même, le tipique mange thème.
Alice Dakota

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Can you repeat that without words?

Dear Alice,

Today I write you in a language we can both understand but none of us can comprehend. If only we could feel like this, with a mask constantly creating a gap between the tongue and the gut. But we have no safety belt, cry no easy words, we forget to live no easy life- we communicate only through breath and blood, silence and dispair.

So what's the point of screaming the air that we feel, trying to find god and love in words, when I've already read you? Let's kill authors, quotes and question marks. Let's just speak in any other language, let me write you in Spanish, French or German, let me lie to you in Afrikaans, Klingon, anyshit, the less we understand the more we feel.

To hell with this, let's just speak in tongues, isn't it ironic how Gutemberg found Pandora in the Bible?

We are not significance, we are just time.

Nitri sim campimi,
Julian Crave

domingo, 22 de julho de 2007

Vale (a preencher)

Os horóscopos não sabem nada
sabem tudo.
Os horóscopos conhecem-nos
porque já nos viram juntos.
Nos seus mapas as horas a que
o braço se ergue em ferro
para o seu ferro.
Os horóscopos são portões
enferrujados pela força da tua saliva
a correr de encontro à minha
para logo depois correr com ela
para logo depois descobrir a inutilidade da meta.
Corramos em círculos
corramos todo o nosso correr.
Os nossos pés foram feitos para isto.
Corramos corramos
fio da navalha fora.
Se tropeçares
vê lá se cais com os dois pés
do mesmo lado.
Não te magoes
que não sei onde é o hospital.
Nunca lá fui.
Vamos
anda com cuidado
que se lá fui
é como se nunca lá tivesse ido
e não quero lá voltar.
Anda dá-me a mão
que também não consigo equilibrar-me.
Não vale empurrar.
Não vale fazer-me rir.
Não vale isto não ser a valer.
Vamos atravessar este fio
e esquecer que não sabemos

o que está na outra ponta.
A isso a isso
que o sangue chama.
Não vale nada.
Só o que quisermos.
Vale tudo.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

como se o abismo fosse impossível de saltar e eu não quisesse saber

dantes não precisavas de um rosto, ou então nem queria que o tivesses

eras um sentimento que se caracterizava pela reflexão recíproca

como se só aí estivesses para acabar as minhas frases

e bastava

essa verdade

mas agora da verdade nada resta e pouco importa, pois a realidade vai pesando na iminência

a realidade

dois pontos

à minha frente ergue-se um muro de realidade, que clama por ser vencido

que me chama e cala os violinos e as guitarras que na minha cabeça tornavam tudo mais simples

à minha frente tu

nua

com a guarda em baixo, quase até a sorrir

e... hesitas uma vez mais

não esperava isso de uma pessoa nua

o silêncio das vozes é largamente compensado pelos golpes do corpo que desvendam mais pele

e já nao queres hesitar mais

queres dizer

como quem não pensa mas sente

tu avanças com receio que eu finja algo em mim

vens, e dizes

mesmo que eu não abra tanto os braços com tu talvez gostasses

páras e sabes que fizemos bem

os teus olhos a tua respiração o meu cabelo a minha respiração o teu cabelo os teus olhos os meus olhos os teus olhos os meus olhos

reconheço-te sempre que adivinho o que pensas

e é deitado com o orvalho a entrar pelo fundo das costas, mesmo que já tenha puxado a camisola para baixo não sei quantas vezes, que penso para mim

DESCOBRI EM TI A VONTADE DE PARTIR
PORRA
E AGORA?

depois finjo que me desiquilibro e salto da janela

e tu segues-me

sem rede

sexta-feira, 6 de julho de 2007

como se fosse para isso e nada mais o espaço que se abisma em torno de mim

dantes inventava-te o rosto de que precisava para sentir os pés no chão

construía com palavras as esquinas da tua pele

como um deus preso pela coleira da tua inexistência

e bastava

essa verdade

mas agora a verdade já não são só as palavras cuspidas são o cuspo que nelas vem pousado são o ar com que são empurradas contra a minha pele

a verdade

dois pontos

atrás de mim ergue-se o mapa com as horas e as datas certas dos sítios por que passei

a vermelho a tinta corrigindo curvas erradas

à minha frente tu

nu

na tua mão a chave da janela

estavas à minha espera perguntas

não esperava nada digo

e o silêncio empurrado a golpes pela tua respiração a ferir-me a pele

ou esperava mas como quem não espera

como quem fica

como quem esquece que acredita

tu avanças até mim fingindo fixar o mapa que conheces bem

vens

mesmo que a minha barriga doa e o meu cabelo trema a cada movimento de ar

páras e nada no espaço de ti a mim se atreve

os teus olhos a tua respiração o meu cabelo a minha respiração o teu cabelo os teus olhos os meus olhos os teus olhos os meus olhos

reconheço algumas esquinas como quem relê um poema

e é sentada na ruga da tua pálpebra esquerda que escrevo no mapa

DESCOBRI O ESPAÇO PARA AQUILO QUE ME TINHA PROIBIDO
AFINAL
EU SINTO

depois puxas-me para ti e saltamos pela janela

sem rede

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Certidão de óbito.

Quando nasci, jurei nunca matar
não foi pra isso que duro me fiz
senti a munição no meu bolso
ao olhar-lhe na cara ignorando o que quis.

Tu deste-me a arma, a escolha
eu consciente, não ignorei
não posso dizer que não tenha virado a cara
mas não posso tampouco dizer que tentei.

Fechei os dois olhos, inspirei
apontei a arma e fingi até mirar
dei por mim a lembrar-me, no futuro,
daquele dia em que me ensinaste a matar.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Dar corda (forca coração sapatos)

isso aconteceu noutra vida quando eramos

os discos dos Beatles riscaram-se em mentiras às vezes lembro-me de como tocavam era uma música bonita

quando me lembro sorrio no conforto de uma mentira

depois sou arrancada para o buraco que se veio cavando em mim no fundo uma grafonola que quero enterrar

desculpa

no meu sorriso arde a tua dentada de adeus e não vás como se me coubesse a mim escolher

por enquanto ouço um a um os discos riscados para depois os partir enquanto me olhas certo de não os poder resgatar

um dia a música vai parar

trago no bolso uma caixinha de corda para aquecer os dedos e esquecer como o fogo pode ser quente

não há-de doer perder quando se ganhou

a ti que te doa o teres ganho e por isso teres perdido

THIS IS NOT WAR

que digam isso depois de me verem camuflada até aos dentes o branco dos olhos furando a força do mato

sentes e dizes que sentes e sentes como se eu pudesse compreender esse hiato que vai da veia aos olhos à boca ao braço ao sexo

queres acreditar no que não pode ser verdade

ou se o é é-o para ti e para a narina forrada a contratos que habitas

não sei viver nesse país desconheço as suas regras

descompreendo com a força de quem não quer compreender

não quero a dor de achar na verdade desse ponto que picas o ser que eu desenhava sem cartões

perdeste-te

perdi-te

perdemo-nos

como eu gostava que nos perdessemos

tu queres estar achado

e eu devo ter andado perdida porque não me lembro de ter ouvido isso nos discos dos Beatles

domingo, 24 de junho de 2007

Não é dor que eu sinto.

Amiga,

Não é dor que eu sinto mas quem dera que fosse. A vida é mais fácil decapitado, mas experimenta viver com um espinho atravessado! Pois eu hoje não sei bem palpar o que se passa ou o que sobrou, de tudo o que vivi ontem. Mas com a dor eu consigo lidar, sei sempre pra onde ela vai. Lembro-me como se fosse hoje: a menina era como se fosse minha, como se não pertencesse aos olhos de mais ninguém, olhava para mim e sempre sorria, uma menina pequenina e jeitosinha em todos os aspectos, impossível de se lhe negar qualquer capricho que fosse. Eu lembro-me bem dela, bem demais, lembras-me tu. Foi hoje e eu lembro-me como se fosse hoje, mas não foi só hoje. Foi também ontem, e pior, antes d'ontem e antes disso até, antes de ela ser pequeninha e jeitosinha (tanto quanto me lembro). Mas então porque continuava ela a sorrir, se a mim só me apetecia chorar-lhe a cara toda e trincar-lhe uma perna para ela aprender a não me tentar fazer feliz quando eu me estava a safar tão bem sendo miserável?! Porra.

E do outro lado da linha o coração, que eu já nem me lembrava de o ver do lado da audácia, de quem eu já nem me lembrava de o ver, ponto. Ou se calhar via e vejo, ou então nunca soube ver, e se sou cego, porque tenho que ser eu a decidir? Porque é que ela não apaga o sorriso, e não me deixa abandonado na rua, à chuva, como um cão ferrugento, para também eu me poder queixar, e queixar, e queixar e consolar? Não é dor que eu sinto, mas quem dera que fosse, quem me dera matar e ter motivos pra matança e pra vingança, e satisfazer-me não ficando satisfeito, saciar-me num final imperfeito, que me deixa (e deixar já é bom).

Qualquer paspalho nos cafés onde vou sabe onde é a dor, com que é que se parece ou a que é que sabe numa terça-feira à noite, sozinho no compartimento. A dor é boa, a dor é fácil, mas sentir é que é fodido. Sentir é a dor sem um cérebro, ou uma luz sequer, que nos diga onde doer, onde queixar, quem matar. E eu hoje sinto demais, não deveria ter almoçado tanto (diz-se que um homem se conquista pela boca, não sei se é verdade mas o arroz estava bom) não me devia ter esforçado tanto, não devia ter escondido tanto e tão pouco. Olho pra ti e logo sei: não devia qualquer coisa, mas devia muito mais. Assim é que não. Não é dor que eu sinto. (Mas quem dera que fosse.)

terça-feira, 19 de junho de 2007

Sonho de Jude

Jude acordou encostado à parede sem saber bem como.
Jude não se lembra de adormecer. Jude lembra-se de estar a correr descalço numa rua deserta de um filme onde o protagonista é uma máscara. Jude lembra-se de conseguir chegar à máscara com a ponta do dedo indicador. Jude lembra-se do bafo da verdade a gelar-lhe o peito. Jude lembra-se do frio nos pés. Jude lembra-se do fogo a arder numa janela. Jude lembra-se, depois de pensar muito, que foi a mando "deles" que ateou o fogo. Jude não sabe quem são "eles" mas "eles" metem-lhe medo. Jude já se tinha cruzado com "eles" mas "eles" não o tinham manipulado ainda. Jude só agora "os" viu caminhar a seu lado para lhe dizerem uma palavra ao ouvido e lhe mostrarem o Livro escondido pelo sobretudo. Jude não tinha alternativa. Jude sabia que era esse o seu fazer e haver. Jude caminhou pelo trepidar do fogo até uma sala completamente branca e vazia, despida de tempo ou espaço. Jude encontrou o Livro no chão. Jude abriu-o e o arrepio de verdade gelou-lhe o sangue. Jude conseguiu abrir a boca para dizer que não quero a verdade, peço desculpa. Jude afinal não precisa da razão de nada. Jude não quer estar nesta sala branca. Jude tem medo. Jude esquece-se de fechar o livro e as palavras são um vómito a tornar-se nascente a tornar-se poço. Jude tem a enchente de palavras água pelos joelhos. Jude tem a enchente de palavras água pela cintura. Jude tem a enchente de palavras água pelo pescoço. Jude não sabe nadar e começa a engolir palavras para não ser engolido por elas. Jude só quer não ser Jude, deixai-o ser outra coisa qualquer.
Jude foi deixado encostado à parede do quarto com o peso do que podia ter sabido.

sábado, 16 de junho de 2007

Não sei se pairas.

Pairas. Pairas por aqui e já não finges que não o fazes, que não me vês, que não te sentes. Baixas a guarda porque por ora estamos sozinhos e porque se a memória não te falha, já não há motivos para não o fazer. Apertas os sapatos e eu não estou a olhar, sabes que eu não estou a olhar e continuas a apertar. Começas a correr e eu continuo a não olhar. Mas agora determinado a não olhar com a força de quem observa um pormenor de agudez filigrânica, num desfocar premeditado de símbolos e sinais que insistem em esbarrar contra mim. E quase que sinto. Mas não olho- até que olho, porque sei que não tenho com que me preocupar, pois não hei-de ver.

Levanto o queixo e tu levantas a moral, pois sabes que só tens de correr em frente, num só caminho, numa só direção, e eu. Eu? Eu tenho que me decidir a calçar. Sorris à revelia como quem vê esperanças e me puxa para as certezas. Passas por mim na segunda volta e eu finjo-me de espantado: "Já começaste a correr?".

sexta-feira, 15 de junho de 2007

um espaço por medir

de mim a ti paredes impossíveis e mudas

de mim a ti a velocidade de um soco rachando tijolos para deixar passar o uivo fresco da noite que medra do lado de lá da parede

de mim a ti cimento areia vidro água pó em desequilíbrio na linha branca que separa o frio do quente

de mim a ti um grito abafado tacteando a face rugosa e ímpia do lençol que cobre a mobília na casa de um morto

de mim a ti um bloco de mármore por talhar num país sem martelos

de mim a ti um risco um traço infinito a apagar-se nas extremidades

de mim a ti tu e eu de costas a contar os passos que faltam para ver quem será atingido

de mim a ti o refogado temperado a tiro de caçadeira que ferve na tinta que escorre de um bloco de notas esquecido à chuva