segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Ironia: A tua história é agora a minha história.

Prolepse: Sou a melhor cliente do take-away do meu bairro e passei a viver em restaurantes. Já nem me lembro de como se liga um fogão. Mas às vezes tenho pena de que essa gente me tenha roubado o prazer de cozinhar.

A história: A mesa foi posta sem medo de esvaziar o frigorífico, a mesa foi posta e os convidados não trouxeram sequer vinho - a loja estava fechada. A mesa estava posta e eles chegaram tarde porque ainda tentaram passar no supermercado, sorte a deles, estava fechado. Talvez eu tenha qualquer coisa para beber, não faz mal. Bebamos do meu. A mesa posta e a comida a arrefecer e as prateleiras esvaziadas para o banquete. Os meus convidados também já deram banquetes, lembram-se bem de como era em suas casas, lembram-se do trabalho de preparação, lembram-se da preocupação com o conforto de toda a gente menos o seu, lembram-se da sujidade que esfregaram da loiça sozinhos a ouvir músicas feitas para serem acompanhadas pelo esfregão de palha d'aço a roçar o fundo ressequido de um tacho. A memória não tem força suficiente. Empanturram-se estes homens e mulheres anafados sentados à minha mesa com os pratos que cozinhei horas a fio e arrotam de prazer no fim. Tecem elogios rasgados aos meus dotes culinários. Obrigada. Comentam o trabalho que deve ter dado. Eu gosto de cozinhar. Então podemos vir amanhã outra vez? Porque não? Eu gosto de cozinhar. No dia seguinte não trazem vinho nem se desculpam por não o terem feito. Não faz mal, há-de haver qualquer coisa para beber no frigorífico. Comem e riem muito ao esvaziarem as garrafas do vinho que é meu mas que não competia a mim trazer. Espero que tenham gostado. Sim, estava muito bom. Amanhã à mesma hora? Não soube dizer que não. Até me agradava a companhia. E assim como assim eu até gosto de cozinhar. No dia seguinte trouxeram um convidado. Eu não o conhecia nem fazia conta com ele mas onde comem cinco também comem seis. Sentaram-se e serviram-se do vinho que já estava na mesa. Eu não consegui comer. Estou cansada. Sirvam-se vocês. E comeram o meu jantar deliciosamente preparado, beberam o meu vinho que os esperava, conversaram uns com os outros. Adormeci no sofá e sonhei com eles, com o passado, quando jantávamos fora e havia na mesa uma garrafa de vinho verde límpido, quase doce, que bebíamos noites sem fim. Era uma garrafa interminável essa que sugávamos quando as noites eram intermináveis e nada nos impedia de estar juntos, de nos mandarmos uns contra os outros, de mandar em nós a verdade e a vontade de estar e o prazer, sim, o prazer dessa presença. Nós éramos só uma gargalhada ébria a ecoar restaurante fora e nem pensávamos na comida nem em quem pagava a conta. Ríamos e bebíamos como dantes neste sonho, até me sair da boca um efusivo Hoje pago eu. Houve um silêncio. Eles fitaram-me e nos seus olhos tremia um brilho novo. Sorri, levantei-me e fui pagar ao balcão. Quando voltei eles não estavam à mesa. Corri porta fora para os apanhar já a caminho de casa. Então? Sabíamos que vinhas aí. Sabíamos. Acordei subitamente com a pancada da porta a fechar. Tinha na mão um bilhete: Obrigada. Amanhã à mesma hora? Sentei-me, fiz uma conta de somar e chorei. Chorei, mandei a loiça fora em vez de a lavar como sempre e foi a chorar que fiz as malas e mudei de casa nessa mesma noite. Deixei somente um bilhete colado na porta. Perdi a vontade de cozinhar. Bom jantar.

Posfácio: Com as tuas mãos fazes de mim o que te tornaste às mãos de outrem.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Mas,

Se eu tivesse algo para escrever, seria para ti. Seria para te dizer coisas, fazer sentir coisas ao saber que também eu as sinto e que o consigo provar. Se eu conseguisse prová-lo sem o sentir, também o faria, nem que fosse para mais tarde me arrepender. Se eu me arrependesse de fazer por ti a migalha do que sou, talvez pudesse sentir o que digo e o que escrevo. Se eu te escrevesse sempre que te sentes só, contigo e comigo que somos um só, único, só, sózinho, honraria a tua necessidade de me descrever no que escreves. Se tu não escrevesses descrevendo o que julgas ver, sentirias o que julgas sentir. Se eu conseguisse escrever o que sinto, seria pra te ver, a ti e a nós, numa forma inusitada e em significantes conteúdos: usaria todos os adjectivos que conheço e até inventaria verbos. Se num buraco suspenso como se fosse um sólido flutuante, me restasse algo para ser, ver, querer, nachar ou viver seria para gastar em ti. Se.

A desejada morte de Sísifo

Carrego às minhas costas uma culpa que não me pertence, uma culpa que me foi emprestada, uma culpa tirada do armário de quem desconheço. Esta culpa é pesada. Carrego-a como quem faz aquilo que tem de fazer mas não percebe porque é que tem de carregar trapos que não são seus. Eu não fiz nada. Se há coisa que eu fiz foi não fazer nada, foi comer o grito e deixá-lo acontecer só na minha barriga, foi sentar-me à espera da minha morte ou de um novo dia. Não tenho culpa se o dia veio. Não me olhes assim, não tenho. O sol surgiu sobre as copas escuras das àrvores e eu não morri. Foi o que fiz: não morri. Que culpa pode haver nisso? Nenhuma. Mas eu carrego-a, uma culpa tricotada por outros para mim porque é mais fácil. Sim, fácil. Deixo aqui a trouxa, está como ma deste. Não sou a aguadeira da culpa. Não fui e não sou. Não posso ser responsabilizada pela noite do outro lado do teu coração. E mereço mais.

O sol já se pôs há tempo suficiente e tu continuas com os olhos no horizonte a fitar a noite. Não vês nas tuas costas o dia a nascer? Estás a perder a hora mágica.

Ficarias chateada se soubesses que escrevo nas tuas costas?