sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Estarei viva quando acordares?

Rousseau sabia das coisas, o meio é uma coisa nefasta. Tu é uma criança, Jude. Vingas-te da vida em mim sem dares por isso e sem dares por isso és o que ainda te faz chorar e escrever cartas. Tudo o que escreves quando não para mim é o que te escrevo de volta, é o que te tenho a dizer e a chorar. As ameaças que concretizaste sao as que não deveria ter de atirar. Parece que ninguém aprende com os erros dos outros. A ti os outros ensinaram-te através da dor a ser como eles. Está bem, é a tua vingança na vida. Mas e eu, tenho alguma coisa a ver com isso? Tenho só olhos para ver que há coisas mais importantes do que o meu bem estar, há reis a que queres continuar a prestar vassalagem a qualquer custo. Sei que valho muito, por isso sei que é muito o que estás disposto a perder. Sei isto porque já o vi, já provei deste vinho feito com o meu sangue porque se é meu não faz mal, diz que sou forte. Só não sei o que fazer com o conhecimento. Falta-me a sabedoria que não quero ter nem admito sequer vir mais alguma vez a precisar. Sabedoria para não me doer que alguém possa valer mais do que o que sentes por mim, alguém cujas hipotéticas dores possam ter mais peso do que as que me apertam todos os dias e a toda a hora como uma tortura de mansinho como quem não quer a coisa e sem dar por isso, atacando lentamente na esperança de que te habitues para te poder doer mais e mais fundo até seres só um espinho vivo para ti mesmo e para o mundo, uma bomba atravessada de uma ponta à outra por quem não consegues matar porque te é querido, o cabrão do carrasco que não te mata mas moi por entre carinhos.
Se eu fosse só literatura, contava-te só a história de um rapaz, assim uma coisa menos explícita, talvez chegue mais facilmente onde as minhas lágrimas não tocam. Um rapaz parado na paragem de autocarro. Está à espera ou está a chorar, provavelmente ambas, e segura na mão um ramo de flores cabisbaixo como que por solidariedade. O rapaz não. É quase digno na dor que acho que tem. Chora sem qualquer esgar ou sequer um tremor. Porque chorará o rapaz do autocarro que não chega? Apetece-me ir abraçá-lo. Mas não vou. Não gosto de pessoas. As pessoas metem-me nojo. Só consigo superar este asco inicial quando já me habituei a elas e à sua humanidade. Aí, sou até quase condescendente com as suas imperfeições. Mas este rapaz ainda é demasiado humano e decido ficar só aqui a sorver-lhe a vida enquanto ele chora. Ele olha para o relógio, o único movimento que lhe vi até agora. Quase etéreo, sube o pulso e desvia até lá os olhos para logo de seguida voltar a baixar o braço, as flores e o olhar se estender até ao fim da rua poisando em nada. Algo nele acontece debaixo da complacência e da calma, algo que eu adivinho. No dedo mindinho que roça a palma da mão vejo bem que ele se prepara para algo, como que ganhando coragem para uma coisa triste e inevitável. É a decisão da sua vida, o passo mais difícil que alguma vez terá de dar. Às vezes o mundo quer dar-nos algo diferente do que queremos. Às vezes devemos olhar para isso e reavaliar a nossa vontade. Outras temos de ser adultos e dizer que não. Ele vai dizer que não. Vai-lhe custar mas ele vai dizer que não àquilo que lhe dói e lhe sabe bem, tudo ao mesmo tempo, um tempo agridoce. Finalmente, a decisão a tremer na sobrancelha e no fim das lágrimas. Os olhos no relógio mais uma vez e quando os desvia já sabe que é o melhor. A dor só se extingue através da dor. Quase que sorri, calculo que seja da certeza. O seu corpo torna-se mais hirto e encaminha-se agora para a beira do passeio. Confirma de relance que não vêm carros do lado esquerdo. Põe o primeiro pé na estrada. Eu sorrio para este quadro sublime do encontro súbito do rapaz com a razão. Os dois pés já na estrada, o ramo de flores esquecido na mão. Ele sorri-me para dentro de si ensaiando outro passo. E um autocarro vermelho vindo a correr da direita contra ele uma pancada e o ar todo a sair dos pulmões um corpo inerte atirado uns metros e depois arrastado e esmagado a sua carne as flores as boas intenções. Oh, rapaz, isto é uma Europa a fingir. Tem de se olhar sempre para os dois lados!