terça-feira, 27 de novembro de 2007

Dois pesadelos e uma carta

Evangelho segundo Alice

Quando olhar para trás de mais longe, não de onde estou, mas de mais longe, de bem longe, de outro país, quando estiver rodeada por outros cheiros e outras cores, quando aquilo para que olhar já não me soar sequer a mim, vou sorrir com carinho para as horas que gastei em frente ao computador adivinhando alguém com existência assinada pelas letras que iam aparecendo. É um cheiro esse sítio que nunca existiu, esse adivinhar do teu olhar, da tua voz, do teu riso. Horas perdidas a construir-te com o cuidado que se deve ter com as obras de arte. Horas fiando a tua pele e o teu abraço, armado escudo para o que seríamos, que eu sabia que só nós podíamos ser. Eras tudo, tudo só tudo e nada mais. Tudo o que consegui pilhar do mundo, eras tu. Tudo o que o mundo me provava ser incapaz de ser, eras tu. Tudo o que eu não poderia jamais ser, eras tu. Tudo o que tu nunca poderias usar para sempre, eras tu. Durante um ano foste a minha esperança de outra vida, um eco do mundo que só havia em mim, foste as cordas que me desamarravam e o meu reflexo novo. Ainda consigo ouvir ecos desse deus que foste. Ainda me lembro do arrepio da tua voz pela primeira vez, do que corria para ti que eras este écran em que hoje debito tempo, de como fui adolescente agora que já não o podia. Tu eras a minha mentira de mundo, a minha prova de vida extraterrestre, o bolinho chinês com a mensagem certa como que a provar razões, eras o reflexo certo na água e mergulhar era o que eu mais queria, nadar contigo rio fora e ser só. Eras o que eu sempre quis, eu sabia, eras. Durante um ano foste-me chegando sem pressa, como mar que toma a terra de assalto sabendo que tem todos os biliões de anos que estão por vir para o fazer. Tu eras o mar que me inundava por piada, eras o mar por que eu me queria ver inundar quando não o podia, eras o mar para onde eu só podia desaguar e nada mais, com calma, o tempo há-de ser nosso. Cheiro o teu sal ainda, o sal que não tens nem poderías ter porque não. Sei de cor as noites solitárias que passaste no teu quarto, sei de cor os caminhos que vão até à biblioteca e desconheço, sei de cor a música que soava quando pisavas esses sítios que fiquei por conhecer, esses sítios que existem somente em mim, rascunhados em torno desse deus que foste. Fui outra coisa contigo e para ti, que eras ninguém. Fiz-me algo de que gostei, de que ainda gosto, de que me orgulho até de ter conseguido. E de repente desfiaste-me, desfizeste-me, perdi-me. Perdi.
Um ano, um ano viveu deus na terra, diz o evangelho segundo Alice. Um ano.


A verdadeira morte de Romeu e Julieta

O relógio estava coxo, fazia-se o tempo que não devia mas podia e queria. Cambaleou horas erradas fora e emendou calendários com desculpas sem qualquer intenção de coerência. O nosso relógio estava doente, a dar as horas bombeadas pelo sangue e os minutos ditados por relógios do passado. Que horas seriam se o nosso relógio tivesse algum dia tido as duas pernas viradas para a frente? Não saberemos. O relógio explodiu. Cada uma das suas partes se separou das outras para logo depois se divir em minúsculos estilhaços que voaram em frente às nossas lágrimas imóveis e as atravessaram soltando delas a água e o grito. Os ponteiros viajaram inteiros do centro da hora errada para os dois pontos opostos em que estavamos. O das horas incidiu majestoso no teu olho direito de que verteram baralhos de cartas rangendo como móveis antigos à noite e um gemido fininho, quase apagado, um gemido de dor verdadeira, dor impossível de calar mas dor sem vontade de se apresentar ou de ser sequer apresentada, dor muda feita pancada forte da carne contra a carne e nunca dor do metal a furar a carne. Por cima da minha orelha cravou-se com força tal o ponteiro dos minutos atrasados que atravessou a minha cabeça e saiu ainda em velocidade levando espetado na ponta o início de uma bandeira por desfraldar. Descolava grandioso o ponteiro e ela se fazia seu rasto desenrolando-se sem pressa até que, vomitada por completo, se abriu imponente com um som seco e de dentro dela caíram papéis brancos minúsculos com textos imperceptíveis, textos por escrever e toda uma literatura que ficava por ser, ali, onde as letras eram armas, eram tanques, eram bombas, eram corpos humanos dilacerados e profanados, eram minas, eram arame farpado e balas perdidas.

A fotografia de um movimento imperceptível: a bandeira púrpura no ar sendo levada pelos minutos errados, os papéis no ar como provas armadilhadas, os estilhaços do relógio errado no ar furando lágrimas e papéis, furando carne, furando espaço, furando os nosso corpos cegos tombando como mártires silenciosos no vácuo.


Querido Jude,
Ando a ter pesadelos. Acordo transpirada e aos gritos, chamando por alguém que não existe. Quando me acalmo é só porque me apercebo de que tudo era uma ficção barata criada pelo meu cérebro para entreter o sono. Mas depois vêm-me à cabeça imagens e sítios, coisas que vivi sem ter vivido e cresce em mim um novo medo, uma sensação de abismo e impossibilidade, como se me tivesse sentado a olhar para o sítio onde o mundo acaba e lá, no fim, não há nada, mais nada, nem tu, nem eu, nem casas, nem animais, nem nada. Nada. Aí, mesmo transpirada, deito-me e cubro o meu corpo até ao nariz, até que o meu ângulo de visão alcance somente o tecto. Tenho medo das paredes e das portas. O tecto acalma-me. Estou protegida. Estou rodeada de coisas que fazem sentido, como estes lençóis que existem e esta cama quente e este tecto que foi construído por pessoas que estão a dormir e amanhã vão trabalhar. Só assim consigo voltar a fechar os olhos. Mas o sono raramente acompanha a paz e cedo me começam a perturbar as sensações do sonho. A dor falsa é igual à dor verdadeira, senti-a com tudo o que uso para sentir no mundo real, que é aquilo que está dentro de mim, e afinal não a consigo apagar assim tão facilmente. Ela invade-me e eu abro os olhos. Ela acalma. Então eu tento pensar em coisas boas. Penso em ti. Rio-me com uma qualquer tolice que tenhas dito. Rio alto até que me invade de súbito a mesma dor mas agora mais certa. Eras tu quem me magoava no sonho. E que vontade de te bater de te chorar de te destruir. A dor alimenta-se desta raiva e quando chega a este ponto já não há nada que possa fazer quanto ao que sinto. Sei que não me fizeste nada. O que me fizeste no sonho não foste tu, foi outra pessoa ou outra coisa, alguém que se apoderou da tua imagem para me ferir. Sei, mas sinto na mesma. E é-me insuportável a dor causada por ti, que és tu. Qualquer outra pessoa no mundo acertaria ao de leve no meu escudo, mas tu, ou a tua imagem roubada por um espírito maligno, podem ferir-me até nos sítios em que não sou, podem ferir-me nos espaços entre a pele e nas unhas ou no cabelo, que são aquelas coisas nossas que não sentem. Quando chego a este ponto, dobro-me sobre mim e choro. Primeiro devagarinho, no escuro silêncio dos lençóis. Depois as lágrimas ganham força e a minha boca dobra-se para verter soluços em vez de soluções. Choro tudo o que fizeste - que normalmente são coisas que tu nunca poderias fazer, coisas que quem gosta não faz pura e simplesmente porque gosta - e o que isso me dói ao abalar o que eu sinto por ti. As prateleiras em que arrumo as caixas dos meus sentimentos partem-se, dobram-se, inclinam-se e as caixas entornam-se. Ouço-as a cair no quarto ao lado - era assim no meu sonho. Tu a patinar sobre sentimentos líquidos azuis e verdes e amarelos e pretos e vermelhos e brancos até que cais sobre algo que estala e nunca mais te mexes. Eu sei que morreste. Bem feita, morreste, penso de mim para mim no sonho. Depois começo a apanhar os líquidos com boiões novos e lembro-me do que eras quando eu não via as facas que me espetavas, lembro-me do que eras para ser e de quando eu não tinha pesadelos, só dores de barriga. E tenho pena. Que fim mais estúpido para um sonho, bem sei. Tu morto e eu com pena, não por ti, mas por mim. Lembro-me disto e choro ainda mais sozinha debaixo do tecto de lençóis. Até que sinto uma mão pesada sobre o meu ombro. Tremendo de medo páro de soluçar e espero que quem quer que seja se vá embora e não me mate, como conjecturei fazer tantas vezes quando era pequena caso um assassino entrasse em minha casa de noite. Quase sem respirar ouço a mão avançar para a ponta do lençol, levantá-lo levemente e tactear pelo meu cabelo até à minha orelha, que começa a afagar com movimentos circulares que reconheço. Nao sei onde fui arranjar a coragem, mas baixei o lençol e desvendei com ar de quem confirma a suspeita desejada a tua cara. Estavas vivo. Tinhas-me ouvido chorar e tinhas vindo ver o que se passava comigo. Deitaste-te ao meu lado na cama sem tirar a mão da minha orelha e olhámo-nos até adormecer, sem dizer nada. Trouxeste contigo, que és tu, a paz.

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